23 Março 2023
"A pressão da decisão por qual curso prestar no vestibular acabou por ser antecipada para qual curso fazer no secundário", escreve Daniele Bruno Santana, graduada em Filosofia e Pedagogia, mãe, trabalhadora em educação e formadora de professoras. Autora do livro “Fragmentos de uma mulher inteira”, em artigo publicado por GGN, 21-03-2023.
Arrisco dizer que não fui a única mãe a mudar do Brasil para Portugal e acreditar que uma das vantagens seria a educação pública para meu filho. Não sou a única. Mas do lado de cá as coisas se mostram diferentes dos documentos, fotos e sites. Há muito da experiência portuguesa que, acredito, possamos usar para aprender e evitar os mesmos erros no Brasil – assim como para valorizarmos aquilo que temos conquistado. Há exceções. Conheço um bom tanto de professoras e uma ou outra diretoras incríveis, mas são isso, exceção. O sistema não foi desenhado para que seja essa a regra.
Começando pelos anos iniciais – Educação infantil (em Portugal, Jardins de infância), Fundamental I (o 1º ciclo aqui). De maneira geral as escolas das quais sou mais próxima têm estruturas fantásticas: espaços, laboratórios, computadores, ginásios, áreas externas, ar condicionado, aquelas coisas que parecem mesmo um luxo que vemos em escolas privadas no Brasil. Já a prática em sala de aula, segue aquele mesmo modelo de educação bancária. A transferência de conhecimento da maneira mais tradicional que já vi acontecer (e já vi bastante coisa estranha em 20 anos trabalhando em educação e 10 como mãe). Mesmo naquelas escolas que são referência do Ministério da Educação recebendo verbas da União Europeia.
As crianças são alfabetizadas a partir da cópia de letras e sílabas, fora de contexto, com grandes canetadas vermelhas mostrando que erraram, que não fizeram o trabalho bem feito. Os anos seguem e as crianças seguem sentadas em suas carteiras, copiando suas tarefas, preenchendo seus manuais seguidos à risca pelas professoras, fazendo suas provas, ouvindo comentários sobre suas faltas de habilidades e de vontade de aprender, sendo deixadas de castigo, sem recreio, copiando frases na lousa. Sim, isso acontece.
Acontece e está respaldado no Estatuto do Aluno, fazendo com que denúncias e reclamações sejam quase impossíveis. Cujas práticas são negadas por professoras e direção, afinal, a educação para paz e infância, que assegura tantos auxílios, não poderia ser desta forma. O estatuto assegura alguns direitos aos estudantes, porém existem diversos artigos sobre o mérito, assim como o condicionamento de acesso a benefícios, como auxílios e participação em associações estudantis, que dependem do desempenho do estudante e de não ter sofrido medidas disciplinares. Vale a pena ler o capítulo IV que trata da disciplina e, talvez como eu, você sinta saudade da ECA.
Pouca gente quer estar em sala de aula – não me refiro apenas às crianças, que já me desabafam coisas terríveis e sua preferência por estar doente a ter que ir para escola mais um dia. Enquanto a geração que está em sala beira a aposentadoria – até 2023 40% dos professores estarão aposentados – jovens, estudantes, recém-formadas também não querem ser professoras.
Professoras e professores seguem em luta por condições de trabalho; por mais justiça no regime de acesso e escolha de escolas (dá-se de forma nacional); progressão na carreira, que conta com provas injustas para que subam de nível (ou, escalão). Gostaria que estes refletissem sobre a avaliação que fazem com que as crianças passem de ano, o tamanho da injustiça para com elas, e como fazem uso dessas provas para chantagear e constranger crianças? Sim, gostaria. Mas não acho que estejam abertas para essa conversa.
Sabemos todos o que acontece ao haver falta de professores – abrem-se precedentes para que pessoas de outras áreas possam assumir turmas. Aqui, por exemplo, alguém formado em Administração Ultramarina pode assumir turmas de Português e Estudos Sociais/História se tiver tido algumas disciplinas relacionadas a esse conteúdo durante a graduação, pois possui qualificação profissional para docência, ainda que não tenham qualificação própria. Serão os últimos da lista de escolha, realmente, porém com a falta de professores com formação acadêmica específica, são diversas vagas abertas e inclusive muitas turmas que, apesar destas aberturas, seguem sem professores.
A partir do 5º podem haver cursos artísticos especializados, que já contam com maior flexibilização do currículo, e então no Ensino Médio (Secundário, aqui) podem escolher seus “percursos formativos”:
a) Cursos científico -humanísticos vocacionados para o prosseguimento de estudos de nível superior;
b) Cursos com planos próprios;
c) Cursos artísticos especializados, vocacionados, consoante a área artística, para o prosseguimento de estudos ou orientados na dupla perspectiva da inserção no mundo do trabalho e do prosseguimento de estudos;
d) Cursos profissionais vocacionados para a qualificação profissional dos alunos, privilegiando a sua inserção no mundo do trabalho e permitindo o prosseguimento de estudos;
e) Ensino secundário na modalidade de ensino recorrente;
f) Cursos de ensino vocacional. [1]
Currículos e ofertas, índices e avaliações estão todos disponíveis para serem consultados, mas vou tentar aqui contar aquilo que vejo nas entrelinhas, nos grupos de mães, nas conversas de adolescentes e jovens recém saídos do ensino médio/secundário. A pressão da decisão por qual curso prestar no vestibular acabou por ser antecipada para qual curso fazer no secundário e, aos 14 anos, muitas crianças apresentam sofrimento psicológico com essa necessidade de escolha, já no início do Fundamental II.
A existência do percurso desejado no plano do ministério da educação não assegura a oferta formativa na escola próxima, e é comum que a “escola próxima” seja bastante distante, o que inviabiliza totalmente que tenham acesso à oferta escolhida. Outros se deparam com a falta de vagas e se vêm obrigados a escolher outro percurso.
Mudar de ideia, sabemos, é comum, saudável, e acontece bastante quando temos 15, 16 anos. Mudar de ideia sobre o percurso que foi iniciado e possivelmente concluído significa refazer o ensino médio ou parte dele. Algo permitido mas que exige, claro, disponibilidades diversas, de tempo, apoio familiar, não necessidade de trabalhar, etc.
A formação que oferece a base-comum se difere muito entre cursos e fica claro, inclusive para os estudantes, que alguns cursos formarão trabalhadores e outros formarão pensadores, futuros acadêmicos. Há, inclusive, um punhado de relatos que eu, sozinha, nessa minha pequena amostragem de mãe e curiosa, recolhi e relatam diversas formas de bullying entre aqueles que estão fazendo o ensino secundário para então prestar as provas de acesso e entrar nas universidades, e aqueles que estão se formando mão-de-obra qualificada, que não conseguirão fazer provas de acesso e, com sorte e esforço, farão um ensino técnico superior em algum instituto politécnico.
Alguns poderão ter acesso a todo conhecimento canônico, acadêmico, esperado e exigido daqueles que iniciarão o ensino superior, outros serão capazes de trabalhar como técnicos, ter empregos melhores que de seus pais em fábricas e restaurantes, talvez abrir seu próprio negócio. Será essa a ascensão disponibilizada para os filhos e filhas de trabalhadores, não é permitido sonhar muito mais alto que isso. Afinal, a universidade não é para eles e além da dificuldade de acesso a permanência é muito custosa.
Ao final, crianças e jovens sofrem de ansiedade, depressão, ou sofrem caladas de dores e angústias, detestam a escola, são formadas em um ambiente de competição e tédio, passam horas na escola recebendo mais do mesmo, por anos, e desfrutam de fato daqueles momentos em que fazem uso do espaço da rua, da autonomia de sair da escola nos intervalos, nas atividades extracurriculares e, unanimemente na minha micro amostragem, no feliz momento da falta de professoras e suas tantas aulas vagas.
Fora das escolas públicas, que são maioria e em muitas regiões a única opção, existem professoras particulares (aqui, explicadoras) e centros de apoio aos montes, onde quem pode, paga por aulas extra. Nas grandes cidades, escolas particulares crescem, com propostas pedagógicas inovadoras e que se manifestam na prática em sala de aula, e diversas escolas internacionais seguindo currículos dos Estados Unidos, Reuni Unido, Alemanha, e formando uma elite trilíngue com acesso a conhecimentos diversos – mas aproximando-se do trabalho, no máximo, em disciplinas de administração, gestão, chefia.
Acredito que enquanto não houver boa formação de professores, excelente remuneração, condições de trabalho e carreira e, acesso universal ao ensino superior, de pouco irá valer alterarmos os curriculum se seguirmos explorando quem trabalha e segregando quem estuda. Seguiremos com as escolas que formam trabalhadores e com as classes altas formando pensadores e intelectuais que irão deter o controle e meios de produção, seguiremos realizando o sonho de Rockefeller:
“Nós não devemos tentar tornar essas pessoas ou nenhum de seus filhos em filósofos ou homens de aprendizagem ou homens da ciência. Nós não devemos fazer surgir deles autores, educadores, poetas ou homens das letras. Nós não devemos buscar pelo embrião de grandes artistas, pintores, músicos, nem advogados, pastores, políticos, homens de estado, dos quais temos ampla oferta. A tarefa que colocamos diante de nós é bastante simples… Nós organizaremos crianças … e ensinar a elas a executar de maneira perfeita coisas que seus pais e mães estão fazendo de maneira imperfeita.” Rockefeller’s General Education Board, “Occasional Letter Number One” (1906).
Direção Geral de Educação de Portugal. Disponível aqui.
Oferta formativa do ensino secundário. Disponível aqui.
Conclusão do secundário e acesso ao superior. Disponível aqui.
Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho. Disponível aqui.
Estatuto do aluno e ética escolar – Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro. Disponível aqui.
Projeção aposentadoria de professores. Disponível aqui.
FENPROF – um dos diversos sindicatos de professores. Disponível aqui.
Grupos de disciplinas e cursos conferentes de qualificação profissional para lecionar. Disponível aqui.
Órgão responsável por alguns dos “percursos” do ensino secundário. Disponível aqui.
[1] Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho.
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A flexibilidade do currículo e a dureza das experiências estudantis nas escolas de Portugal. Artigo de Daniele Bruno Santana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU